Um olhar para as margens
Sandra Rey, setembro de 2022
Podemos observar dois movimentos contraditórios na arte atual, por um lado a reafirmação da técnica e retorno às categorias tradicionais e, por outro, a insurgência contra todo tipo de especificidade exclusiva, e a abertura para procedimentos e cruzamentos que possibilitam instaurar experiências no campo da arte. Diante das inúmeras possibilidades, e de incontáveis alternativas no contexto contemporâneo da arte atual, os artistas entrelaçam seus processos a pesquisas de diversas ordens para exercer sua liberdade e instaurar seu próprio conceito e modo de fazer arte.
Antes das técnicas e dos procedimentos, porém, o que está atrelado, e na base de todo processo de arte e do ato criativo, é a ideia. Ter uma ideia é algo que acontece raramente e exige coragem pois pode mudar o rumo das coisas. Mas uma ideia chega impregnada por uma espécie de alegria inexplicável; ter uma ideia é fazer festa consigo mesmo, diz Deleuze, pois se está sozinho nessa empreitada. Ele chama atenção para o fato que ter uma ideia não é algo genérico, quando temos uma ideia, essa ideia já está destinada a este ou àquele domínio. As ideias, as temos a respeito do que sabemos, e devemos tratá-las como potenciais comprometidos nesse ou naquele modo de expressão. Em função do que sabemos fazer melhor, podemos ter uma ideia em tal área ou domínio. Quanto melhor se conhece uma técnica, um modo de fazer, maiores as possibilidades de se ter ideias que possam ampliar ou subverter aquilo que conhecemos.
Por ter o privilégio de acompanhar o seu processo criativo no mestrado, e nessa pesquisa de doutorado que ora finda, posso testemunhar que em sua trajetória, nos embates com o processo criativo no desenho, Claudia Hamerski teve uma ideia. No desenvolvimento dessa ideia, ela passa a explorar e ampliar as possibilidades criativas e semânticas do seu trabalho, buscando novos agenciamentos para o descartável, para as sobras de seus desenhos. E eis a ideia que formula como hipótese de trabalho: “o surgimento de um desenho gerado através de um modo não convencional de desenhar.”
Durante a fatura dos grandes desenhos, cuidadosamente elaborados a partir de fotografias de vegetações que brotam espontaneamente nas fissuras das calçadas, nas fendas de fachadas dos prédios, nas rachaduras do asfalto, Claudia passa a experimentar outras possibilidades para o destino dos resíduos, rastros e marcas produzidas pelo ato de desenhar.
Na pesquisa, esse olhar dirigido ao que é periférico na malha urbana, ao que passa desapercebido no cotidiano, repercutiu no interior do ateliê e no centro de seu processo criativo. Com espírito investigativo a artista foi desdobrando em sucessivas camadas, a sua produção. À medida que foi inventando novos desígnios para as lascas que sobravam do ato de apontar o lápis, para as aparas de papel recortadas das margens dos desenhos, ou ainda, para as marcas e gestos impelidos pela fatura dos desenhos, foi aprofundando a compreensão sobre o ato de criação e ampliando o seu pensamento sobre o desenho, passando a considerar essa produção “marginal” como sendo “de igual importância para o desenho que lhes deu origem.”
Esse, o mote da tese que apresenta. O de um desenho que surge como um rastro de um processo principal e adquire a autonomia através da ressignifcação processual e semântica dos próprios elementos que constituem seu ato criativo.
O desenho à margem, elaborado com resíduos, opera transversalidades e cruzamentos entre as técnicas tradicionais do desenho, que a artista domina, e as mais remotas probabilidades de utilização dos materiais, e infinitas possibilidades de invenções. São agenciamentos imprevisíveis sobre os gestos e os materiais que constituem o ato de desenhar, ampliando o contexto que lhe deu origem, e propondo outros valores para a sua arte.
O paradoxo que se expressa no interior do trabalho artístico é o de quando o artista chega no traço de identidade que distingue sua linguagem, a função passa a ser desconstruí-la; do contrário, estará refém e condenado a copiar a si mesmo. Claudia construiu sua identidade como artista através do desenho e transgredir essa lógica de identificação foi o caminho para conquistar uma produção poética potente. E foi tudo por uma questão de sensibilidade, de olhar para as margens com olhos de admiração, e buscar outros sentidos para o que se encerra na mesma realidade de cada dia.
Descarrilhar a ordenação significante daquilo que se sabe fazer melhor muda o lugar subjetivo de onde vemos e damos significado às coisas. O que entendo ao acompanhar o processo da artista é que a estratégia consistiu em expor e romper o engate entre a coisa e sua representação, reconfigurando o campo de sua experiência. E, destituir aquilo que lhe é próprio, emancipa o artista da identidade que o sujeita.
Para além da fruição das obras que resultam dessa pesquisa, o que essa tese comprova?
Que ao deixar-se abraçar pelas coisas, ao perceber no ordinário aquilo que é incomum, a artista alça a potencial expressivo o que é marginal e descartável, e instaura um modo não convencional de desenhar, reafirmando o caráter não normativo do ato poético.
Texto escrito por Sandra Rey curador da exposição Às margens do desenho, realizada em 2022 na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo do Instituto de Artes da UFRGS em Porto Alegre - Brasil.